Wednesday, February 1, 2012

À Cidade da Praia - Poema de Jorge Carlos Fonseca

À Cidade da Praia

Cidade minha, obsessão muito dolorida,
quem alguma vez te romanceou,
quem espreitou,
de alguma varanda escondida,
os seios coniformes e desprevenidos
de tuas caníngicas (de cana e esfinge) mulheres ?

Quem, até hoje, te escreveu poema que näo fosse
chato, desolado ou ranhoso?!
(Lembras-te de "Câ nhôs djobem di pâ baxu"?)

Onde se esconde o teu Ferreri, em que labirinto se deixou de ver o teu Kafka, cidade minha apetecida?
Estão a dar cabo de ti! Mas quero ser eu o único a dar cabo de ti!
Quero ser o teu rei, o teu súbdito, o teu amante, o teu poeta,
quero ser eu a cidade (tu), toda a cidade.

Dizem que não mereces umas Las Hurdes?!
Acham os teus inimigos que nunca terás um Ulysses ou uma Sistina?!
Onde está o teu Garbarek, onde está a tua Vera Zasulich, cidade minha, capital que vais ser
do império que aí vem?
Ri dos imperadores que te querem dar, tu que já tiveste
e celebraste Patchitcha, Fernando Jorge, Baíno, Valente, Grilo, Tútú, Antoninho Baratêro, Cócó di Gigante, Nezinho Brasileiro e Lindos Melhas!
Hei-de construir , para os teus heróis, os mortos e os vivos, pirâmides, castelos damasquinados, e erguer, em nome deles, catedrais, estádios e universidades reluzentes.

Onde fica o teu sexo? Qual é o teu sexo?!
Serei o teu amor singular, quero ser eu apenas a seduzir-te,
a violar-te, docemente, diariamente,
minha cidade, minha capital suficientemente leviana,
de vez em quando discreta prostituta na arte e nos sonhos.

Quero-te só para mim,
o peito alto e descoberto,
os cabelos de mar, soltos e bravios,
entrelaçados a sal e vinagre,
a vagina célere, insubmissa e com os dentes de fora, arreganhados. Uma vagina que aloje a América, toda a Guang Dong, Paris, as avenidas de Kuala Lampur, Ou Mun, para näo falar dessas capitais LP.
Uma vagina, cidade amada,
que, finalmente, junte di Nhâ Reinalda a Brubeck,
vagabundo orgasmo a gigantesco lava-loiças, onde dançaräo
cisnes dourados e peixes vermelhos ao ritmo de rag time.
(Mas deixa que te diga: nunca hei-de aceitar que teus detractores, afinal, ingratos pastores de tuas águas e veias, te chamem vagina navegável!)

Apesar das traições, grandes e pequenas (quem näo trai, a final?) ; apesar de teu mitigado pundonor quando,
soberba e de olhar fulminante,
ofereces o suave e rápido encanto de tuas partes mais íntimas, farei de teu útero um palácio visigótico, ou, se quiseres, árabe ou judio, com átrios gigantescos, centenas de corredores e jardins de orquídeas, guardado por um exército permanente e fardado a rigor.

Onde está o teu Picasso? Onde está a tua Guernica?!
As pedras de tuas ruas não têm musgo?
Afinal, lembras-te de alguma vez te chamarem grande capital, cidade eterna ou varanda de qualquer continente?!

Serei eu a dar-te os jovens que mereces, e não essas múmias, essa cachupa requentadíssima que te servem por aí.
Mereces meter essa gente toda no bolso. Que é Montreux comparado com a tua Gamboa?

Que seria do mundo sem ti, tu o Artista, o Tesouro por enquanto desconhecido, quase clandestino, a face perlada, o sorriso, eterna cenoura
de feitiços cor-de-prata?!

Não há clonagem capaz de fazer outra igual a ti! Fará Lisboa, S.Filipe, Ziguinchor, Pará ou Niamey, mas cidade como tu, nunca!
Terás uma mindelo, três assomadas, meia dúzia de sidneys,
uma vintena de mosteiros só para ti,
todos os bares de Pat Pong, e,
se o desejares,
farei de ti uma metrópole sem igual, longa, perversa, cheia de luz, a pedir sempre mais luz, como queria Goethe.
Transportarei para ti,
arrastado por uma esquadrilha de galeras de todas as cores,
erecto, cilíndrico e musculado fiorde,
que atravessará,
festivo e arrogante,
as artérias da ressuscitada Praia Negra,
e, então, cidade minha, só minha,
erguerei sobre o teu aveludado dorso
uma gigantesca bandeira com os dizeres seguintes:
Abram bem os ouvidos, poetas desta cidade!
Nunca digam que paraíso nenhum existe
ou que todos os paraísos são artificiais!

Se, por algum tosco Cláudio ou Napoleão,
à morte condenado for,
nada temas, amada minha, que farei como Arria:
"Praia, non dolet!".

Queres ser outra cidade, ter outro nome? Ser desavergonhada como Sun City?
Alguma vez desejaste ter outro esposo?
Não?! Já o adivinhava, minha cidade (só minha), cidade da Praia!

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